Disparou... - Para Fábrica de letras

Subiu o degrau do autocarro naquele final de tarde, como em todos os finais de tarde dos dias anteriores. Por muito que tentasse fazer alongar os dias, o final de tarde acabava por surgir sempre cedo de mais.
Na escola esquecia tudo o resto, não que tivesse uma vida socialmente perfeita lá, mas era uma vida pacifica pelo menos. Não tinha particular interesse nos rapazes ou namoricos e entregava-se aos estudos avidamente na certeza de que isso seria a sua ponte para um mundo melhor, um mundo sem os problemas desconcertantes que tinha no presente.

Sentou-se na última fila, desejando silenciosamente que houvesse trânsito e que os sinais estivessem vermelhos. Mas como sempre, a viagem foi demasiado rápida e em menos de nada deu consigo a entrar no prédio da sua casa.
Hoje era um daqueles dias – qual não o era?! – e mesmo cá em baixo já conseguia ouvir os gritos da discussão que tomaria conta do resto da noite. Pensou em não subir, em não entrar naquela casa conspurcada, mas sabia que se não entrasse só pioraria a situação para a mãe e irmã.

Assim que abriu a porta deparou-se com um cenário ainda mais deturpado do que era habitual. A irmã pequenina jazia inerte, com os olhos vazios e estranhos, num canto ao fundo do corredor. A mãe tentava alcançá-la mas ele impedia-lhe o caminho, vociferando palavrões e gesticulando naquele estado claramente ébrio que já lhe era tão comum. Ao vê-la direccionou-lhe os seus insultos e ela sabia já demasiado bem o que a esperava.

Aceitou, calada e conformada, as agressões físicas e verbais. Eram tão somente mais do mesmo. Deixara de o reconhecer há já muito tempo, duvidava sequer que ainda lhe tivesse uma réstia de amor que fosse. Chegava mesmo a desejar-lhe o pior mal de todos quando, à noite, deitava a cabeça na almofada.

Um punho acertou-lhe a face e sentiu-se atordoada, cambaleou contra o móvel da entrada e, na esperança que ele sentisse algum tipo de complacência, deixou-se cair ao chão. Esperou pela próxima pancada, mas não chegou.
Olhou para cima e viu-o dirigir-se novamente à irmãzinha que continuava inerte. Um súbito pavor e fúria apoderaram-se de si. Não!
Sentiu-se quase como se fosse outra pessoa apoderar-se das suas acções. Abriu a gaveta do móvel e, sem se dar tempo de se arrepender do que iria fazer, procurou a arma que sabia que ele mantinha ali.

Soube naquele preciso momento que jamais se arrependeria do que estava prestes a fazer e isso foi, de tudo, o que mais lhe doeu dentro do peito. Soube que jamais perdoaria a mãe por permitir que assim fosse.
Levantou-se com uma clareza sem precedentes, agarrou na arma com as duas mãos e tentou manter-se firme. E nesse momento ele virou-se para si com uma expressão que lhe ficaria gravada na mente para todo o sempre.

Fechou os olhos e disparou…

Para Fábrica de Letras


18 Diabruras:

A Loira disse...

Adorei a maneira como escreveste. A história, infelizmente é a realidade de tantas pessoas. Grande desafio, estou a pensar em participar também.

Beijinhos.

Roxanne disse...

até me faltou o ar...
parabéns.

Poetic Girl disse...

O desespero por vezes obriga a soluções mais drasticas, quantas vidas não se encerram nesse pequeno texto? beijo

Anónimo disse...

Uma realidade comum demais para ser ignorada.

Parabéns.

:)

chica disse...

Triste realidade aqui retratada tão lindamente!beijos,chica

Ginger disse...

A isso chamo um final feliz. Há coisas que não vale mesmo a pena adiar. ;)


*

Osga disse...

Demasiado real este conto...

Isto não deveria acontecer... :(

Purple disse...

É a dura realidade de tantas crianças por esse mundo fora.

Beijinhu

Louise disse...

Vera, infelizmente é uma realidade demasiado banal.

Roxanne, obrigada, espero que já tenhas recuperado o fôlego ;).

Poetic GIRL, infelizmente assim é.

Ulisses, precisamente. Obrigada :)

Chica, obrigada.

Gingerbread Girl, feliz mesmo seria ter sido a mãe... e não a filha.

Osga, infelizmente é real.

Purple, sim é, esperemos que isso mude com o tempo.

Sofia disse...

Os meus comentários já são um bocado repetitivos, mas a verdade é esta: tu escreves muito bem!
E sem medo de escrever sobres temas mais difíceis...
BJ grande como tu!

Ricardo Fabião disse...

Um final não mais doloroso que toda narrativa. Nossa protagonista bem sabe o que aguentou até criar coragem para disparar a arma.
Era preciso resgatar a dignidade se quisesse prosseguir, e foi o único meio.

Muito bom, Louise.

Beijos.
Ricardo

Sandra disse...

PARABÉNS PELA POSTAGEM..
SÃO REALIDADES VIVIDAS TODOS OS DIAS.

ESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
UM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
http://sandrarandrade7.blogspot.com/

UM GRANDE ABRAÇO AMIGA.
SANDRA

Silent Man disse...

Bem ainda tou chocado! Que grande estoria, que espero que seja falsa para ti! Mas infelizmente é real para tantos outros!

Kiss

Nuance disse...

Muito bom!!!
Definitivamente, gosto muito deste "Diabo dentro de ti"!

Anónimo disse...

já li uns 4 ou 5 através do link e este pelo seu suspense ainda que previsível foi o mais bem conseguido. Penso em participar também, e ser devorado pela crítica :)

Tulipa Negra disse...

Um tema muito forte, este da violência familiar. Ainda bem que nesta história alguém teve coragem para acabar com essa situação, o que infelizmente nem sempre acontece. Parabéns pelo texto.
Beijinhos

Fê blue bird disse...

Um cenário que infelizmente não é só de ficção.
Muito bem estruturado, evidenciando que sabe muito bem escrever.
Bjos

meldevespas disse...

Belíssima descrição. E sim, estas situações devem ser arrancadas pela raiz, antes de se chegar a estes extremos.

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Agradeço desde já tudo* aquilo que o diabo dentro de ti possa ter para dizer...

*excepto tudo aquilo que o diabo dentro de mim não concordar

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